Um possível guia para férias ao sol (excerto)
O edifício que durante anos funcionou como lota de Portimão, hoje abandonado e entaipado, foi o local escolhido para a apresentação de outros três artistas participantes na exposição 'Holidays in the Sun': Fernanda Fragateiro, Tobias Rehberger e Thomas Hirschhorn. Mesmo junto ao rio, em plena marginal, encontra-se num local muito frequentado, tanto pela população local como pelos muitos visitantes sazonais, principalmente durante o Verão -- razão pela qual é eleito por vários vendedores ambulantes, muitos deles imigrantes de origem africana, para o comércio de artesanato e de imitações de produtos de luxo. Note-se que também é vizinho de vários restaurantes com muito movimento.
Fernanda Fragateiro (Montijo, Portugal, 1962) decidiu trabalhar o próprio espaço do edifício, num projecto que aproxima os campos da arquitectura e das artes visuais -- que, como em várias obras anteriores da artista, nos permite repensar a linha que separa aquelas duas disciplinas e até que ponto elas se têm vindo a contaminar. Será suficiente, ou teoricamente produtivo, continuarmos a atribuir à primeira o primado da funcionalidade, da interioridade, e à segunda a exclusividade do formalismo, da exterioridade?
O facto é que em In the vocabulary of profit, there is no word for 'pity' [“No vocabulário do lucro não existe a palavra ‘compaixão’ “] (2008), a artista confunde aquelas distinções, opondo-se à ideia de que a arquitectura cria contentores preenchidos pelos utentes dos espaços, e de que os artistas, nomeadamente os escultores, os ocupam com objectos produzidos nos seus estúdios. Por outro lado, promovendo uma indistinção entre interior privado e exterior público, a artista combate, como veremos, a manutenção do mito burguês do individualismo.
Este projecto parte de uma cuidadosa observação deste espaço da antiga lota, da sua relação com a envolvente paisagística e urbana, da sua potencial utilização pelos frequentadores da marginal de Portimão e dos clientes dos restaurantes das imediações. Uma das primeiras intenções foi justamente devolver aquele edifício aos cidadãos, torná-lo público, ainda que temporariamente. Decidiu-se que parte da lota iria ser simplesmente esvaziada, limpa, restaurada -- a parcela do edifício, já lá iremos, que receberia a obra de um colega de exposição, Tobias Rehberger. A outras partes desta construção seriam removidas camadas, a algumas paredes adossados elementos, muros seriam esventrados, por forma a servirem como postos de observação da paisagem, espelhos seriam colocados em pontos específicos -- promovendo disjunções sensoriais, ambiguidades no campo visual, numa apropriação de processos artísticos tornados possíveis por alguma arte dos anos de 1960, concretamente de artistas como Gordon Matta-Clark e Robert Smithson.
Na verdade, Fernanda Fragateiro transformou a lota numa espécie de aparelho óptico sensível à paisagem e à luz, logo, posto de observação privilegiado das transformações infligidas ao edifício e à paisagem pela passagem das horas, ao mesmo tempo que -- e esta aparente contradição é parte constituinte deste projecto, como aliás de vários outros que o antecedem -- contrariou qualquer subalternização dos nossos vários sentidos à ditadura da visão. Explico melhor: a artista consegue, através da utilização de tipologias, suportes e materiais que são recorrentes no seu trabalho, e que vão desde madeiras e contraplacados a espelhos, fazer depender a existência do projecto do uso que dele fizerem, das experiências eminentemente hápticas que proporcionar. Por outro lado, questiona a ideia da arquitectura como um espaço idealizado, já que está a mostrar como e de que é feito um edifício; está, no fundo, a desvincular um determinado espaço arquitectónico de uma imagem e a transformá-lo, acima de tudo, numa experiência.
Curiosamente, e mesmo antes de sabermos o que acontecerá ao edifício, agora que foi restaurado e tornado novamente público, adivinhamos que este projecto se dilatará temporalmente, a nível da sua recepção, já que funcionará como história, como rumor. Que alguém tenha devotado semanas à limpeza e simultaneamente ao restauro e à destruição dos muros de antiga lota, será com certeza comentado, independentemente do acesso a documentação, nomeadamente a imagens -- como um seu projecto datado de 2001 e intitulado Não Ligar (talvez o que mais se relacione com a transformação deste mercado) existe na minha cabeça apenas enquanto reconstituição baseada em descrições que apareceram em catálogos, já que nunca tive acesso a mais do que a uma imagem da obra. Se um dos resultados do processo de trabalho na antiga lota foi o estabelecimento de uma comunidade entre trabalhadores da construção civil, empregados camarários, equipas de montagem de obras de arte, os muitos curiosos que se aproximaram e a quem Fernanda Fragateiro fez questão de falar sobre o seu projecto, e de como estas perguntas e respostas lhe eram intrínsecas, -- é um exercício curioso imaginar uma comunidade futura ligada pela memória do projecto, pelas histórias e rumores que lhe ficarão associados.
--Ricardo Nicolau |
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